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por Gonçalo Neves ‹g-nevesFORIGU@clix.pt›
A existência de literatura em esperanto é um dos factos menos conhecidos na história desta língua. A história da literatura em esperanto pode dividir‑se em três grandes períodos. O primeiro, desde 1887 até à primeira Guerra Mundial; o segundo, entre as duas grandes guerras; e o terceiro, após a segunda Guerra Mundial.
Durante o primeiro período surgiram principalmente traduções de grandes obras da literatura mundial, mas foi nessa altura que se fixaram as bases da tradição linguística e cultural, a partir da qual cresceu mais tarde uma literatura própria e autónoma em esperanto, de alto nível estético e humanístico.
As traduções sempre tiveram grande importância na literatura em esperanto, mesmo depois do Primeiro Período, de tal forma que quase todos os escritores de renome em esperanto foram também grande tradutores. Pode mesmo afirmar‑se que esta realidade se manteve praticamente até à década de 60, altura em que começam a ser lançadas as obras poéticas de Balður Ragnarsson (Islândia) e Edwin De Kock (África do Sul), primeiros escritores que atingiram a nomeada só com obras originalmente escritas em esperanto. Seja como for, a tradição literária anterior contribuiu para que hoje se encontrem traduzidas em esperanto as principais obras dos grandes autores da literatura mundial (Shakespeare, Molière, Kavka, Goethe, Camões, Andersen, Mickievicz, Sienkiewicz, Bulgakov, Cervantes, García Márquez, García Lorca, Petöfi, Dante, Virgílo, entre muitos outros).
Durante este período destacam‑se três escolas literárias. A primeira e principal foi a escola eslava, activa entre 1900 e 1920 (L. L. Zamenhof, F. Zamenhof, Devâtnin, Kofman, Grabowski, Leo Belmont, Kazimierz Bein, Borovko), a qual se caracterizou pelo seu puro lirismo e por uma grande liberdade estilística, que contribuiram sobremaneira para a formação do que ainda hoje se considera “o espírito” ou o “bom estilo” da língua.
Entre 1890 e 1902 considera‑se a existência da escola nórdica (Langlet, Svanborn, Nylén, Nordensvan), activa principalmente no campo da prosa, mas mais modesta do ponto de vista estilístico. Entre 1900 e 1920 destacou‑se também a escola francesa (Beaufront, Bourlet, Cart, Boirac, Valienne, Privat), mais virada para o campo da teorização e ensaios literários, a qual desenvolveu a língua de forma vernácula mas algo rígida.
No período entre as duas Guerras destaca‑se a existência da escola de Budapeste, que se desenvolveu a partir de uma revista literária (Literatura Mondo) e da actividade de dois eminentes escritores húngaros: Kalocsay Kálmán e Baghy Gyula. Esta escola, e principalmente o génio plurifacetado de Kalocsay, influenciou de tal forma a técnica poética, que o esperanto adquiriu finalmente nesta altura o estatuto de língua literária autónoma, como viria a reconhecer mais tarde o 60º Congresso Mundial PEN reunido em Santiago de Compostela (1993).
Tárkony Lajos, Baranyai Imre e Szilágyi Ferenc foram outros grandes nomes húngaros pertencentes à escola de Budapeste, sob cuja influência desenvolveram a sua actividade escritores de outras nacionalidades, como Hilda Dresen (Estónia), Nikolaas Kurzens (Lituânia), Leonard Newell e K. R. C. Sturmer (Inglaterra), Teo Jung (Alemanha), Gaston Waringhien e Raymond Schwartz (França), Henri Vatré (Suíça), Stellan Engholm (Suécia), Jan Fethke (Polónia), Jaume Grau i Casas (Catalunha), Tomaš Pumpř (Checoslováquia), Sain‑Jules Zee (China), entre outros.
Fora da influência da escola de Budapeste desenvolveu‑se a chamada escola soviética, cuja actividade literária, essencialmente lírica, foi fortemente influenciada pelos ideais da Revolução de Outubro (Miqalskiĭ, Qoqlov, Nekrasov, Demidûk, Drezen, Grigorov, Êroŝenko). Grande parte destes escritores foram executados quando o esperanto foi perseguido pelo regime estalinista.
Merece destaque igualmente a escola nipónica, constituída por escritores, jornalistas, cientistas e tradutores, na qual se evidenciaram, no campo poético, Ōsaka Kenji, Itō Saburo, Hattori Tōru e Kanamatu Kenryō, e na prosa, Tabata Kisaku, Nakagaki Kojiro e Hasegawa Teru.
A actividade da escola de Budapeste prolongou‑se muito para além da Segunda Guerra, continuando a exercer a sua forte influência literária e estilística.
Inicialmente na peugada da escola anterior, mas rapidamente adquirindo autonomia literária, começou a sua actividade a chamada escola escocesa, que se formou a partir de um quarteto constituído por William Auld, John Dinwoodie, John Francis e Reto Rossetti. Estes autores publicaram em 1952 um livro de poesias (Kvaropo, ou seja, Quarteto), que, embora inspirado na matriz da escola húngara, acabaria por inaugurar um novo ciclo e tradição literárias. Deste grupo destacou‑se Auld, mais profícuo e profundo que os restantes, ainda hoje considerado o maior poeta em esperanto. A sua principal obra literária (La infana raso), publicada em 1956, é considerada a obra‑prima da literatura em esperanto. Em 1992 foi publicada uma tradução em português (A raça menina), da autoria do brasileiro Leopoldo Knoedt, que aliás já publicara em 1980 uma versão completa d’Os Lusíadas em esperanto.
Sob a influência da escola escocesa desenvolveram a sua actividade inúmeros escritores, no campo da ficção, teatro e poesia. Merecem destaque Marjorie Boulton (Inglaterra), Brendon Clark (Nova‑Zelândia), Poul Thorsen (Dinamarca), Geraldo Mattos e Sylla Chaves (Brasil), Eli Urbanová (Checoslováquia), Claude Piron (Suíça), Szathmári Sándor (Hungria), Jean Ribillard (França), bem como novos grupos literários ou escolas: a escola italiana, formada a partir da revista Literatura Foiro e ainda hoje activa (Nicolino Rossi, Valerio Ari, Clelia Conterno, Gaudenzio Pisoni, Lina Gabrielli), a segunda escola nipónica, continuação da primeira, que atingiu o expoente máximo em Miyamoto Masao e Ueyama Masao; a escola jugoslava, desenvolvida a partir da revista La suda stelo (Josip Velebit, Božidar Vančik, Tibor Sekelj, Dalibor Brozović e principalmente o grande Ivo Rotkvić). Na década de 80 começaram a ser publicadas as obras do checo Karél Pič (poesia, romance, conto, crítica e teoria literárias), que sacudiram o panorama literário em esperanto, não só pelos conceitos literários expressos, como pelo abundante léxico utilizado, na sua maior parte recolhido de uma tradição literária que remontava aos primórdios da língua. Grande parte da sua obra continua por publicar.
Na actualidade, para além da influência da obra de Pič, entretanto falecido, e de alguns autores referidos anteriormente mas ainda activos (ex. Claude Piron, Edwin De Kock), destaca‑se o romancista húngaro Némere István, o mais profícuo escritor em esperanto de todos os tempos, o romancista australiano Trevor Steele, considerado um dos maiores estilistas de sempre, o sueco Sten Johansson, o poeta chinês Mao Zifu, o romancista francês Georges Lagrange, o poeta flamengo Christian Declerck, o espanhol Fernando de Diego, considerado o continuador de Kalocsay, o português Manuel de Seabra, o poeta italiano Mauro Nervi, bem como a chamada escola ibérica, constituída pelos espanhóis Jorge Camacho, Miguel Adúriz e Miguel Fernández e pelo português Gonçalo Neves, que publicaram em 1993 um volume colectivo de poemas (Ibere libere), ao qual se seguiram outras obras publicadas individualmente, na mesma esteira literária. Em redor deste grupo destacam‑se igualmente o crítico literário espanhol Antonio Valén e o poeta catalão Abel Montagut, que publicou em 1993 uma das mais importantes obras em esperanto de todos os tempos (Poemo de Utnoa), considerada a primeira grande epopeia nesta língua, e entretanto já traduzida para catalão.
Embora esteja por escrever a história literária do esperanto, é de salientar a enorme diversidade geográfica e cultural da literatura desta língua recente, a qual não impediu, no entanto, a formação, elaboração, aperfeiçoamento e preservação de um estilo comum, ou se quisermos, de critérios estéticos comuns.